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Drama como Proposta de Compreensão da Clínica de Milton Erickson

Atualizado: 14 de fev. de 2024

Maurício da Silva Neubern* Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.


O presente trabalho procura oferecer, por meio da noção de drama, um arcabouço inicial para a compreensão da clínica de Milton Erickson. Tal como esse autor parecia conceber, a noção de drama toma o teatro como metáfora da subjetividade humana, concebendo que as ações da pessoa ocorrem num cenário vivido e são pautadas por enredos simbólicos que influenciam suas tramas relacionais, mas, geralmente, mantêm-se inconscientes. Tal noção remete a uma complexa relação da pessoa com o mundo, na qual as ações, produção de sentido, papéis e corporeidade são perpassadas pela cultura, incluindo a participação da pessoa que pode se tornar ator e autor de seu destino e do terapeuta que pode construir personagens pertinentes ao cenário vivido pela pessoa.

A obra de Milton H. Erickson, psiquiatra norte americano (1901-1980), frequentemente é destacada como uma das principais responsáveis pela retomada da hipnose no século XX, como pelo nascimento das terapias breves e da terapia familiar sistêmica (Neubern, 2009; Zeig& Geary, 2000). No entanto, não são poucas as dúvidas e polêmicas que pairam a seu respeito, principalmente no que se refere à compreensão de seus pressupostos. Há quem o aproxime das terapias cognitivas e comportamentais (Erickson, 2002), da programação neolinguística(Bandler & Grinder, 1982/1986) ou ainda da terapia familiar estratégica (Haley, 1993; Nichols& Schwarz, 2006), mas tais classificações caem por terra diante de uma análise mais profundada prática clínica de Erickson.

Basta considerar que a ênfase em padrões de relação, típicas da terapia estratégica, não abre espaço para uma compreensão da pessoa em sua singularidade e seu mundo interno, pontos que também são importantes na concepção clínica desse autor(Erickson, 1983; Zeig, 2006). De modo semelhante, sua concepção de inconsciente não permite uma relação com o cognitivismo, como a complexidade de sua visão de homem não se reduz às tentativas de simplificação da neolinguística que empobrecem sobremaneira sua proposta. Em suma, o impacto que tal autor possuiu no campo da psicoterapia parece contrastar com a dificuldade em compreender suas propostas, que ainda se afiguram nebulosas para muitos autores (Hoffman, 1992). Por outro lado, algumas leituras permitem uma compreensão mais abrangente de seu trabalho, procurando compreendê-lo não como a derivação de uma escola, mas como uma proposta clínica original (Erickson & Rossi, 1989; O’Hanlon, 1991; Zeig, 2006).

Como se conhece o outro a partir da relação clínica, em que se baseia a observação, como se considera a singularidade do outro, como ele pode ser concebido enquanto pessoa, como conceber o inconsciente, as emoções e o uso da linguagem, como o terapeuta deve se colocar e se observar na relação, isto é, princípios fundamentais de seu trabalho (O’Hanlon, 1991) são algumas das questões que carecem de um aprofundamento teórico e epistemológico de maneira a serem inseridas e articuladas num conjunto de significados pertinentes com a concepção e prática clínica de Erickson. A palavra drama refere-se às ações que acontecem num cenário social específico que é perpassado por enredos simbólicos, compostos por diversas metáforas e que determinam formas pelas quais as relações devem acontecer. O drama, que envolve desde pequenos gestos à construção de personagens terapêuticos, opõe-se a uma clínica restrita ao verbal e ao cognitivo, pois se refere a ações que mobilizam a corporalidade, os processos emocionais e a produção de sentidos nos contextos cotidianos da vida das pessoas.

Nesse sentido, o trabalho propõe dois objetivos específicos, intrinsecamente ligados entre si. Por um lado, oferecer visibilidade a alguns princípios clínicos de Erickson, não exatamente no sentido de descobrir quais seriam suas intenções originais e implícitas quanto aos mesmos, mas com o intuito de torná-los mais nítidos, compreensíveis e acessíveis tanto à reflexão quanto à prática e ao ensino da clínica. Obviamente, é importante ressaltar que tal objetivo não consiste numa interpretação arbitrária, uma vez que, para efetivá-lo, buscou-se uma compreensão pertinente de sua obra por meio de estudos que abordaram suas origens epistemológicas, biografia e momento histórico (Erickson & Keeney, 2006; Neubern, 2004;2009; Zeig & Geary, 2000).


CENÁRIOS E ENREDOS

Uma das referências importantes para a compreensão da clínica de Erickson, na proposta deste trabalho, é a noção de cenário subjetivo, devido a toda sua complexidade dramática configurada na subjetividade das pessoas e da relação terapêutica em que tomavam parte(Zeig & Geary, 2000). Isto porque, a leitura que fazia sobre as pessoas que demandavam sua ajuda terapêutica, envolvia a relação concreta e simbólica entre pessoas, uma geração de sentidos subjetivos particulares, como ainda um enredo simbólico que pautava as relações e papéis entre os protagonistas, mas era desconhecido dos mesmos.

Contudo, rompendo com as perspectivas dominantes na psicologia (González Rey, 2005), o cenário não se restringe a uma territorialidade individual ou social, nem real ou imaginária (1), mas consiste num espaço vivido (Merleau-Ponty, 1949) que pode integrar, em diferentes momentos e de variadas maneiras, a relação entre tais dimensões sem diluí-las entre si. Embora tais dimensões se interpenetrem, se complementem e também se oponham, as situações clínicas podem levá-las a diferentes configurações, cujo foco pode privilegiar uma delas num dado momento sem, porém, esgotar a outra. Assim, num de seus trabalhos mais complexos, Erickson (Erickson &Rossi, 1989), conduz a terapia a um cenário com maior foco na dimensão imaginária, induzindo uma jovem paciente ao transe hipnótico para que revisse uma série de acontecimentos de sua história. Tratava-se de uma jovem fóbica com sérias privações afetivas na infância e adolescência que temia que tais problemas repercutissem na criação de seus futuros filhos.

Em transe hipnótico, ela pôde rever, acompanhada por um amigo imaginário de muito apoio produzida por Erickson – o homem de fevereiro – os dramas de sua história, interagir com os personagens aí presentes e modificar seus sentidos subjetivos sem que isso implicasse qualquer relação direta e linear com seus contextos sociais concretos ou alguma produção discursiva do mundo social. O social, em tais casos, representado por cenas com personagens históricos como pai, mãe, empregados da família, animais de estimação, colegas e professores não fazia referências diretas e isomórficas a pessoas e situações concretas, mas consistiu em imagens, emoções, palavras, percepções, personagens e crenças cujo teor simbólico implicou na forma como tais experiências foram subjetivadas pela jovem, principalmente em termos inconscientes.

Tal processo pôde promover mudanças de atitude concretas da pessoa na dimensão real, fosse diante da percepção de si mesma, de sua história, da eliminação de seu sintoma e da criação de seus filhos. Ao mesmo tempo, o foco da terapia poderia também estender a noção de cenário a contextos relacionais reais, de onde também emergem processos simbólicos e imaginários, e que permitem uma visão mais abrangente do sistema de relações, indo além da vivência de uma única pessoa. Diante de um casal com um marido dominador e uma esposa que se sentia sufocada com seu autoritarismo, Erickson (citado em Haley, 1985) prescreveu uma tarefa na qual o casal deveria ir a um restaurante seguindo um mapa previamente traçado pelo terapeuta. O marido não deveria tomar conhecimento do confuso e pouco prático mapa, mas apenas acatar as diretrizes ditadas pela esposa que, ao se sentar à mesa do restaurante, deveria se adiantar ao garçom e fazer seu pedido sem que o marido lhe impusesse o que ela deveria comer. Tomando a cidade e o próprio restaurante como cenários e os membros do casal e pessoas do restaurante como personagens concretos, a prescrição favoreceu à esposa a possibilidade de também estar no comando, fazendo o marido obedecê-la e ter espaço para expressar e ser acatada em algo de sua preferência.

É curioso notar que tais formas de intervenção na dimensão real podem produzir modificações significativas em processos altamente imbuídos da dimensão imaginária, como os projetos conjugais, os sonhos e as transmissões familiares. Por se tratar, em sua maior parte, de processos inconscientes, a pessoa se vê presa a tais referências que parecem anteceder sua consciência ou sua deliberação para sair delas, de maneira que ela apenas as executa sem conseguir se desembaraçar da complexa rede de sentidos e ações de sua trama e sem perceber que suas próprias atitudes as reforçam e as confirmam.

O enredo simbólico, em tais circunstâncias, organiza-se geralmente de maneira a oferecer pouca ou nenhuma opção para as pessoas que passam a se sentir paralisadas, impotentes, fracassadas e sem perspectivas de enxergar saída para suas respectivas situações. Nesse ponto, a proposta de Erickson (Erickson & Rossi, 1980), em contraste com boa parte dos terapeutas modernos ou mesmo contemporâneos, não é a de uma denúncia explícita sobre a influência dos enredos, de modo a se produzirem insights que o levassem a uma tomada de consciência. Ele propõe que a pessoa se desvencilhe dessas referências vivenciando-as a partir de novas posturas, significados e ações que assume na execução de suas tramas. Para tanto, o terapeuta pode lançar mão do conto de histórias, no estado normal ou de transe, que repetem, de alguma forma, o enredo simbólico, com toda sua riqueza em termos de vivência e expressão, mas acrescentam ao mesmo novas possibilidades de atuação para a pessoa, que pode se movimentar de outras maneiras por entre as tramas de modo a modificar substancialmente sua participação no processo.

A partir de toda uma estrutura de significados sugeridos pela história (frame), ela cria suas próprias soluções em termos de significados, sentidos, percepções e emoções que subsidiarão uma nova forma de atuar neste enredo, também passível de se transformar sob sua influência. Tal foi o caso do homem, um PhD de 25anos muito intelectualizado, que pediu sua ajuda para um problema de ejaculação precoce(Erickson, 1935). Induzindo-o ao transe hipnótico, Erickson lhe disse que certa vez o cliente havia encontrado um pesquisador muito importante que lhe ofereceu a parceria numa pesquisa de grande interesse. O pesquisador marcou um encontro em sua casa, numa certa data e hora e o cliente foi recebido gentilmente por sua esposa que lhe disse que seu marido voltaria em breve de um compromisso inesperado. Ela lhe apresentou a sua bela filha, com a qual o deixou a sós conversando sobre artes. A moça lhe mostrou alguns vasos pintados por ela e também um delicado disco de vidro, artisticamente pintado, que era um cinzeiro quedaria a seu pai, mas, de tão delicado que era, ele seria mais um ornamento do que um cinzeiro.

A seguir, a sequência da história: Você admirou muito aquele cinzeiro e sentiu muito desejo de fumar. Por causa da juventude da moça, ficou hesitante em lhe oferecer um cigarro. Também, não sabia como seu pai se sentiria sobre essas coisas e que você deveria estar atentos e fumar seria ou não educado. Pensando nisso, você se tornou mais e mais impaciente.[…]. Enfim, em desespero você pediu a ela permissão para fumar ao que, prontamente, ela concordou e pegou um cigarro sem lhe oferecer nada. Ao fumar, você olhou para o cinzeiro que ela havia pintado e a moça, notando seu olhar, sugeriu que você o usasse. Hesitante, você o usou e continuou falando sobre várias coisas. Enquanto você falava, ficou preocupado, mais e mais, com o retorno de seu pai. Rapidamente você se tornou tão impaciente que não apreciou mais o cigarro e, ao invés de colocar o cigarro delicadamente no cinzeiro, você o colocou lá, aceso e bruscamente, e continuou falando com ela. Aparentemente ela não notou seu gesto, mas após alguns minutos, vocês ouviram um barulho, pois o cigarro continuou queimando e quebrou o cinzeiro. Você se sentiu mal com isso, mas a moça lhe disse que não tinha problema, que ainda não o tinha dado a seu pai e que ele não ficaria sabendo de nada. Porém, você se sentiu mais e mais culpado pela indelicadeza em quebrar o cinzeiro e pensando em como o pai dela reagiria a isso […] depois disso, o pai telefonou, dizendo que não poderia vir e que marcaria com você outro dia. E você deixou a casa muito bem, sentindo-se melhor com a situação e percebendo que, de fato, não havia nada naquela situação com o qual você não pudesse lidar. (Erickson, 1935, pp. 323-324)

Esse processo, que durou uma única sessão, desenvolveu-se a partir da singularidade dos sentidos subjetivos desse jovem e, de certa forma, repetiu a temática simbólica que ele vivenciava: ao se sentir interessado por alguém, possuía uma ereção, sentia-se muito excitado, mas era tomado por preocupações e tensões, de maneira a ejacular rapidamente. Daí uma forte sensação de culpa e fracasso que passou a atormentá-lo toda vez que se interessasse por uma mulher. O estar com uma parceira sexual era regido por uma temática onde surgiam, na mesma vivência, configurações de excitação, desejo e ereção, perpassados por fracasso, preocupação e culpa que culminavam com a produção da ejaculação precoce e com uma parceira que também se sentia mal no processo. No entanto, na história contada, é possível observar uma forte dimensão metafórica, pela semelhança dos elementos em jogo, mas que também levava a um desfecho distinto do habitual.

Existe a espera pelo encontro com o pesquisador (espera por algo importante, tal como a expectativa sexual) e também a surpresa, marcada pelo interesse por uma bela moça que é ligada a esse evento importante. Ele desenvolve uma relação de cumplicidade com essa moça atraente, ficando sozinho com ela, numa condição de não poder ser visto por outros (o que, no caso, evidencia o teor erótico e excitante do momento). Ao se deparar com um objeto delicado e artístico feito pela moça –o cinzeiro (nesse contexto, o corpo e a vagina da moça), ele sente um grande desejo de fumar(o que o remete a seu desejo sexual e à sua ereção) e sente-se indeciso quanto a colocar ou não o cigarro aceso (seu pênis ereto) no cinzeiro.

Com a permissão da moça ele leva seu desejo adiante (uma relação sexual) e fica muito preocupado com a quebra do delicado cinzeiro (a consumação do ato) e a possibilidade de seu pai chegar e descobrir tudo (revive sua intensa ansiedade durante o ato sexual). Mas, ao final do processo, há um desfecho diferente no qual ele se sentiu bem e percebeu que não havia problemas naquela situação com a qual ele não pudesse lidar. Vale destacar que, após alguns meses, o jovem apresentou poucas vezes o problema e passou a vivenciar sua sexualidade de modo bem mais prazeroso, confortável e tranquilo.


CONSTRUINDO O PERSONAGEM

Uma questão incontornável, dentro do que foi discutido até aqui, refere-se à forma pela qual o terapeuta, na perspectiva de Erickson, adentra os cenários vividos do paciente. Nesse sentido, é necessário considerar que o terapeuta adentra a relação como pessoa, com sua própria subjetividade e corpo, que passam a interagir com o outro numa forma de comunicação intensa e portadora de materialidade nada desprezível (Csordas, 2002;Roustang, 2006).

Além das próprias palavras que são trocadas nesse jogo interativo, existem os gestos, as expressões faciais, a coreografia corporal, o tom de voz, a cadência das palavras, os sinais mínimos e reflexos corporais (contração de músculos, pupila, pálpebras, por exemplo) que além do significado que possuem numa cultura e na troca social, afetam os protagonistas de forma concreta, ancorando-se no próprio ser do terapeuta encarnado em seu corpo. Dito de outro modo, as relações desenvolvidas com o paciente deixam verdadeiras marcas no terapeuta que remetem à posição que ele ocupa no processo vivido, que dizem como essas marcas o afetam, como também podem apontar caminhos para o andamento da terapia.

Diante da intensidade dessa vivência, que não pode passar despercebida na relação clínica, a prática de Erickson (Erickson & Rossi, 1979) permite conceber que o terapeuta deveria utilizar essa influência recebida da relação a favor do processo, construindo personagens que pudessem se endereçar de forma pertinente àquele paciente em específico, com suas temáticas e produções de sentido particulares. Entretanto, semelhante construção não deveria se fundamentar numa tentativa manipuladora de influência, mas num processo no qual o terapeuta se sentisse coerente consigo mesmo e fiel aos processos vividos em seu íntimo tal como descrito na passagem a seguir, onde Erickson faz uma rara referência a esse princípio de trabalho que tantas vezes utilizou:

“Para fazer esse tipo de terapia você deve ser você mesmo como pessoa. Não deve procurar imitar quem quer que seja, mas deve proceder de seu jeito, de sua própria maneira. ” (Erickson & Rossi, 1979, p. 276).

Em outras palavras, semelhante à construção do personagem no teatro (Stanislawski, 2006) o terapeuta extrai de sua própria subjetividade e em coerência com ela, a matéria prima para a construção do personagem que será criado de maneira a assumir, sem que o paciente o perceba, posturas, papéis e toda uma gestualidade capaz de promover um andamento proveitoso do processo terapêutico. Perpassado por esse papel, as ações do terapeuta na relação com a pessoa transformam-se em poderosos instrumentos de influência capazes de mobilizá-lo à mudança de seus próprios papéis e processos subjetivos nos cenários sociais em que toma parte, embora haja situações em que o próprio terapeuta possa ficar cristalizado em papéis que paralisam o processo terapêutico (Zeig, 2001).

A dramaticidade de tais ações se dá justamente porque tocam, mobilizam, impactam a pessoa pelas transmissões de subjetividade, com significados e processos emocionais, num dado momento e contexto simbólico da relação terapêutica. Em certa ocasião, Erickson (1977) recebeu uma mulher que procurava saber as razões de suas crises de asma, que só ocorriam no frio do inverno. Procurou ajuda terapêutica contrariada, pois, para ela suas crises eram de origem orgânica e não subjetivas, como sugeriram vários médicos. Em sua triste história, discorreu sobre uma trajetória de ataques verbais de seu pai que sempre lhe escrevia cartas agressivas, reclamando a herança da mãe da paciente já falecida, durante todo o ano, menos à época do calor. Erickson, desse modo, com certa atitude de provocação, perguntou se aceitaria que demonstrasse que sua asma era psicológica, pois estavam num lugar desértico, Phoenix, ao que ela assentiu em tom irônico. Após uma série de sugestões hipnóticas, ele a bateu ligeiramente com um lápis, o que foi seguido por uma forte crise de asma, administrada por técnicas sugestivas, que permitiram à paciente um retorno normal de sua respiração. Com as repetições desse procedimento, ela passou a conceber a dimensão subjetiva de sua doença e a se posicionar de forma mais ativa diante dos ataques e injustiças de seu pai.

Assim, as leves, mas dramáticas, batidas com o lápis(correspondendo às cartas escritas pelo pai) a levaram a responder sua pergunta (origem da asma) e a assumir novos papéis em sua sofrida trama familiar. Pietro vinha de uma família italiana onde o pai, intensamente autoritário, decidiu que seu primeiro filho deveria se tornar um grande músico e, para tanto, escolheu o instrumento e traçou um plano de estudos musicais para Pietro por vários anos, com 10 horas diárias de atividade, sob a orientação de exigentes professores até que, com o passar dos anos, o jovem se tornou solista de conceituada orquestra. Porém, após se demitir da orquestra por desavenças com o novo maestro, seu lábio inferior ficou inchado e, desesperadamente, o músico buscou vários tratamentos médicos que não o levaram a qualquer resultado satisfatório. Logo nas primeiras entrevistas psicoterápicas, queixou-se de Erickson pois precisava de uma hipnose, algo que resolvesse seu problema, e não de conversas sobre sua história. Após a quinta sessão, estando o jovem sob um leve transe, o terapeuta lhe sugeriu de modo autoritário e enfático que seu problema era de origem psicológica e poderia ser curado, já que era a expressão de algo que foi reprimido, ignorado e proibido a seus olhos. Despertando-o do transe, despediu o paciente sem deixar que perguntasse nada e fosse para casa para que seu inconsciente fizesse o trabalho, preparando-o para a próxima sessão.

No encontro seguinte, Pietro lhe disse que queria imediatamente um medicamento que resolvesse o problema de seu lábio ao que foi respondido por Erickson: “Cale-se com sua mente consciente com essas bobagens de medicamento e deixe sua mente inconsciente fazer seu trabalho. ” (1977, p. 244). O jovem reagiu de forma violenta e agressiva, acusando o terapeuta, por todo o tempo da sessão, de ser incompetente, membro da escória profissional (psiquiatra), algo inútil, profano e obsceno. O terapeuta, então, disse-lhe ao final da sessão: “Seu inconsciente pode se calar agora e continuar na próxima sessão exatamente de onde parou e fazer um trabalho melhor e mais profundo. Agora deixe meu consultório e vá embora. ” (Erickson, 1977, p. 244). Esse estilo de sessão durou nove meses e as agressões de Pietro quanto a Erickson passaram por sua profissão de psiquiatra, a escória de medicina, por sua origem étnica norueguesa, vikings pilha dores e ladrões, até acusá-lo como péssimo pai de família. Neste momento, Pietro lhe disse: “Se você fosse meu pai…” mas fez uma pausa e acrescentou mais calmo e desconcertado “…, mas você não é meu pai! ”(Erickson, 1977, p. 245).

Erickson confirmou que não a era e disse que o jovem poderia dizer muitas coisas a seu pai, mas de uma forma que o velho homem pudesse compreender e suportar, o que foi feito pelo jovem numa conversa franca, educada e firme durante o jantar. Em um mês, seu lábio inferior voltou ao normal e ele continuou a praticar a flauta, mas, a partir de então, sem as severas exigências às quais estava habituado. Neste caso, é possível conceber que Erickson assumiu uma postura autoritária em diferentes sentidos de maneira a repetir a temática simbólica de opressão paterna vivida pelo jovem.

Utilizou-se de uma hipnose autoritária e diretiva (o que não era comum em seu trabalho), de expressões imperativas, como “cale-se”, “vá embora”, “pense” que buscavam determinar oque caberia ou não ao paciente fazer no processo terapêutico, de maneira que a terapia buscava reproduzir o enredo da vida real que o mobilizava intensamente em sua emocionalidade, que produziu o inchaço na região do corpo – a boca – necessária para a execução da flauta, também inicialmente imposta pelo pai. Contudo, o teor acolhedor da terapia e o conjunto de sugestões sutis de que “deixasse seu inconsciente fazer o trabalho”, permitiram a criação de um espaço no cenário terapêutico no qual Pietro pôde expressar toda sua raiva e revolta reprimidas por muitos anos que só, gradativamente, pôde perceber que estava relacionada ao autoritarismo de seu pai.

Em outras palavras, Erickson assumiu o papel desse pai no enredo simbólico vivido pelo paciente, sem que este soubesse o que acontecia, e o provocou a reagir, saindo do papel de oprimido, expressando as emoções configuradas como problema. Talvez por não perceber conscientemente que ali estava encarnado simbolicamente seu pai autoritário, tenha sentido, influenciado pelo próprio contexto terapêutico, que poderia manifestar a emocionalidade reprimida por muitos anos, já que não era proibido atacar um terceiro que não fosse seu pai.

No entanto, com a atuação de Erickson neste papel, em cada gesto, palavra e expressão, percebeu as tramas existentes em torno de seu sofrimento e se dispôs a mudar a relação com o mesmo, modificando seu papel no enredo familiar mais amplo, o que culminou com toda uma modificação de sua produção subjetiva e com a volta de seu lábio ao estado normal. Pietro abriu mão do roteiro escrito por um outro e se tornou autor e ator, ou seja, sujeito de sua própria história.


CONSIDERAÇÕES FINAIS:DRAMA E SABER CLÍNICO

Considera-se que a pertinência da noção de drama para a compreensão da clínica de Erickson se dê basicamente por três razões coerentes com o trabalho desse importante nome da psicoterapia do século XX. Primeiramente porque busca uma metáfora humana para a compreensão dos processos subjetivos das pessoas, não cedendo à tentação de importar metáforas de outros campos do saber com o intuito de garantir a legitimidade científica, como a psicanálise com a mecânica dos fluídos e o aparelho psíquico, as psicologias cognitivas e sistêmicas com a computação e as psicologias experimentais com os animais de laboratório(Neubern, 2004).

Em profunda sintonia com a obra de Erickson, a noção de drama aponta para uma produção humana como forma de compreensão do próprio humano, ressaltando que o homem, em toda sua riqueza antropológica, simbólica e subjetiva, é a melhor metáfora para compreender o homem. Tal tendência se confirma de alguma forma, em autores que destacam que o campo da subjetividade como um celeiro potencial de metáforas e noções-chave relevantes para a compreensão dos processos humanos (González Rey, 2007; Merleau-Ponty, 1949) e para um entendimento mais profundo da própria ciência (Santos, 2000).

Em segundo lugar, a noção de drama abre espaço para uma compreensão complexa da clínica, tal como desenvolvido na obra de Milton Erickson (Neubern, 2002, 2004). Em contraste comas tendências individualistas da clínica, ela favorece uma compreensão mais dialética entre a pessoa e o contexto social, concebendo que ela seja qualificada em seu cenário de atuação. Embora semelhante noção necessite ser subsidiada por contribuições que remetem às produções simbólicas internas da subjetividade, principalmente em termos de emoções, significados e sentidos (González Rey, 2007; Neubern, 2009), ao colocar o cenário como uma produção que articula o mundo individual com as influências socioculturais, a noção de drama, em consonância com reflexões contemporâneas (González Rey, 2005; Morin, 2001) rompe com a tradicional dicotomia entre tais polos e permite uma visão mais abrangente sobre as pessoas no processo clínico.

De uma parte porque, mesmo focando-se um processo individual permeado intensamente pelo imaginário, como na hipnose, o sociocultural se faz presente por meio de personagens, cenas, aprendizados e enredos simbólicos que remetem cada um à sua história e a suas formas de inserção no cotidiano; de outra parte porque, mesmo focando o real das trocas sociais, existe considerável espaço para uma compreensão e um trabalho mais profundo da pessoa e do imaginário que os perpassam. No caso de Pietro (Erickson & Rossi, 1979), por sua vez, houve um intenso trabalho no plano real da relação terapêutica, que, no entanto, repercutiu intensamente no imaginário típico deum projeto familiar (portanto, social) transmitido de uma geração para outra.

De modo semelhante, no caso da jovem com asma (Erickson, 1977), os processos imaginários trabalhados na hipnose ajudaram a jovem a possuir uma relação diferente consigo mesma em termos reais (percebendo melhor seu próprio corpo e a origem de sua asma), como também a uma perspectiva de atuação distinta diante de uma situação social concreta. Contudo, a partir do processo clínico, as ações dos pacientes puderam produzir novas qualidades de processos subjetivos em termos de sentidos, significados, emoções que favoreceram a criação de novas atitudes e papéis perante as tramas das quais participavam.

Assim, após nove meses de trabalho intenso com a agressividade reprimida, foi Pietro quem percebeu a situação de nova forma e estabeleceu novo tipo de relação com o pai; o jovem com problemas sexuais aprendeu a acrescentar uma sensação de bem estar após as angustiantes reflexões durante o ato sexual, modificando sua performance; a esposa oprimida aproveitou o espaço que lhe foi concedido para aprender a se expressar de outra forma diante do marido, saindo do papel oprimido; e a moça asmática passou a perceber importantes facetas de suas relações com o pai, de maneira a sair do papel vitimizado e assumir uma postura de defesa de si mesma quanto a suas agressões e abusos do pai. Em suma, tais processos de mudança ocorreram porque houve uma apropriação por parte dessas pessoas que, a partir de uma relação distinta consigo mesmos, seus processos, seus corpos, suas imagens de si, que permitiram recriar as influências presentes no processo terapêutico.

Dito de outro modo, a influência do cenário da terapia fez com que as pequenas mudanças ocorressem de dentro para fora de maneira a adquirirem uma condição de legitimidade para tais pessoas, isto é, algo que se integrou a suas produções subjetivas e se ancorou em seus corpos (Csordas, 2002). Analogicamente, é como se cada paciente pudesse rever seu enredo simbólico e, a partir de sua própria subjetividade, construísse personagens mais coerentes com uma posição mais livre, digna e saudável em seu cenário subjetivo.

Em terceiro lugar, a noção de drama situa o terapeuta também como ator, de modo a ressaltar, sobretudo, seu potencial de criação na relação clínica e na produção do saber aí presente. Aqui não se trata apenas das ações cuja materialidade adquire sentidos no cenário terapêutico, mas da própria subjetividade do terapeuta que é colocada em pauta na prática clínica e na produção do conhecimento. Isto porque a construção de um personagem, tal como aqui ilustrado, remete ao estabelecimento de uma relação entre a produção subjetivado terapeuta e os papéis que desenvolve para atuar junto ao paciente. Longe de sugerir um subjetivismo raso ou a ilusão de um lugar neutro, tal perspectiva procura fazer com que o terapeuta assuma as referências a partir das quais se dirige ao paciente, o que pode implicar não só na revisão de sua forma de ser, mas também numa pesquisa sobre as vozes teóricas que o habitam (Morin, 1994).

Existem, nessa proposta, possibilidades de discussões relevantes com alguns debates contemporâneos sobre o papel do sujeito na construção do conhecimento, tanto em termos de um olhar sobre sua própria subjetividade (Gaulejac, 1999;Morin, 2001), como de suas possibilidades criativas na produção do saber científico (Hacking,2000; Santos, 2000; Stengers, 1995).

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