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Hipnose, Singularidade e Dificuldades de Amamentação: um Estudo Clínico (parte I)

Atualizado: 6 de fev.

MAURÍCIO DA SILVA NEUBERN. PARTE I

RESUMO

Por meio de um breve estudo de caso, o presente trabalho busca ilustrar a construção de processos individualizados de sugestão hipnótica para uma jovem mãe que possuía dificuldades em amamentar seu bebê. Após a apresentação do caso, o trabalho centra-se em três eixos de interpretação dos processos sugestivos que estiveram presentes na condução da sessão hipnótica: um primeiro voltado para os sentidos físicos, o segundo para o uso de metáforas envolvendo o leite e o terceiro para formas de redefinição sobre a competência da jovem como mãe. Nesses três eixos busca-se destacar a importância de que as sugestões hipnóticas contemplem a singularidade da mãe, contemplando suas emoções, sentidos e significados particulares. Por fim, o trabalho é concluído ressaltando a perspectiva de que a necessidade de mais pesquisas qualitativas deva consistir no reconhecimento da clínica como campo de pesquisa de modo que seja possível contemplar processos subjetivos presentes nas relações hipnóticas como o transe, a comunicação, a linguagem, a simbolização, as emoções e as construções de sentido. Palavras-chave: Hipnose; singularidade; dificuldade de amamentação.

A literatura corrente sobre hipnose é dominada por perspectivas nomotéticas, marcadas por forte teor instrumentalista, pela busca do conhecimento de padrões gerais de resposta de sugestionabilidade e pela mensuração de determinadas respostas (Nash & Barnier, 2008). Nesse sentido, os estudos voltados para o uso da hipnose na amamentação tendem a investigar o tema sob diferentes enfoques, mas na mesma perspectiva generalista. Enquanto alguns se centram sobre os efeitos químicos da hipnose no leite (Berthold, 2004; Cepicky, Pecena, Roth, Stroufova & Sosnova, 1995), há os que enfatizam o uso de escalas e protocolos (Montgomery & Hale, 2006), os que se voltam para sua eficiência como uma terapia complementar (Ayers, 2000; Duddridge, 2002; Tiran & Chummun, 2004) e ainda os que focam o uso dessa modalidade terapêutica por parte dos profissionais de saúde (Raysler, 1999; Tiran, 2005). Semelhantes perspectivas, tipicamente ligadas a uma ótica médica, são úteis na medida em que fornecem informações gerais sobre o fenômeno, podendo situá-lo dentro da compreensão da população de sujeitos que acorrem aos serviços de saúde.

Entretanto, a dimensão subjetiva do processo de amamentação, que possui papel fundamental na ótica de certos autores (Arrais, 2005; Golse, 2003), fica completamente excluída de tais estudos, que se voltam para respostas e não processos, como para padrões gerais e não para a singularidade dos sujeitos. De acordo com a observação clínica (Arrais, 2005), a construção de sentido da mãe quanto a seu bebê é afetada, dentre outros processos, por sua história de vida, pelas pressões sociais que recebe, por seus projetos quanto à criança, pela forma como se deu sua gravidez, pelas mudanças de diferentes ordens que daí surgiram, como pela rede de relações que a mãe estabeleceu, inclusive com sua família. Sendo assim, a integração de múltiplos processos presentes na amamentação de uma criança remete a uma singularidade que não se dá por meio de um simples somatório de variáveis nem pode ser contemplada por estudos nomotéticos, voltados para a obtenção de respostas gerais.

 

 

Semelhante problema traz à tona a necessidade de uma pesquisa individualizada, que contemple as características singulares não só da pessoa, como também de seu contexto (Erickson, 1983; 1986; Erickson & Rossi, 1979; Zeig, 1994). Assim, o ato aparentemente simples da amamentação possui múltiplas articulações que envolvem a mãe e o bebê e precisam ser contemplados num processo hipnótico: entre ambos, ocorre uma comunicação intensa, múltipla e profunda que envolve tanto a dimensão sensória e emocional, como os primeiros registros simbólicos da subjetividade da criança (Golse, 2003). Além disso, tal relação é perpassada por uma série de mensagens de ordem social e cultural, cuja influência é marcante na construção dos processos subjetivos em que a mãe e a criança tomam parte. Por tais razões, concebe-se que o processo terapêutico e hipnótico da amamentação, ao invés de se estabelecer a partir de sugestões padronizadas, deve contemplar a singularidade de cada pessoa, com suas expressões próprias, suas formas de comunicação e seus modos de construção de sentido que se integram a processos socioculturais diversos.

Em vista desse quadro, o presente trabalho propõe um breve estudo de caso com o intuito de ilustrar a construção de processos individualizados de sugestão hipnótica que visem contemplar a singularidade de uma pessoa. Trata-se de uma jovem mãe que solicitou ajuda hipnótica em função de suas dificuldades em amamentar seu bebê recém-nascido, mostrando-se muito irritada, insegura e incompetente na situação. O trabalho será desenvolvido buscando destacar que a construção das induções possuiu estreita relação com os processos subjetivos da jovem, seja em termos de seus sentidos físicos e suas formas de comunicação, seja em termos de suas construções emocionais e de sentido (Erickson, 1980). A interpretação, fundamentada em referenciais clínicos e qualitativos (Gonzalez Rey, 2005; Neubern, no prelo) será desenvolvida em torno de três eixos de sugestão que ocorreram, na maior parte do processo, de forma simultânea. Deve-se destacar ainda que as ditas sugestões, conduzidas pelo pesquisador principal do trabalho, quem efetivou o atendimento da jovem, serão mostradas apenas em alguns de seus momentos, em razão dos limites de espaço.

O CASO

Maria Luíza, 21 anos, estudante de arquitetura, havia mencionado ao pesquisador, numa conversa informal, que estava com dificuldades em amamentar seu bebê. Ela se mostrava muito cansada e dizia que há noites não dormia bem. Então, aceitou o convite do pesquisador para uma sessão experimental de hipnose, em seu grupo de pesquisa, formado pelo pesquisador e 4 estagiários de psicologia. Era sabido que a criança havia vindo de uma forma inesperada, pois a jovem ainda não havia se casado com seu namorado, nem concluído sua faculdade. Além disso, era comum que sua família a criticasse, como se ela não soubesse cuidar de seu bebê, principalmente quando ele chorava. Em meio a tal dinâmica, o choro do bebê a tornava mais irritadiça, colocando-a na sensação de incompetência e paralisia, o que se agravava ainda mais com as críticas de sua família. Assim, embora produzisse leite, ele não fluía na amamentação e sua irritação aumentava ainda mais com as mordidas do bebê, tentando sugar seu seio. Porém, ao ouvir falar do grupo de pesquisa de hipnose, ela se interessou pela ideia e resolveu participar da sessão, dizendo estar disposta a qualquer trabalho para melhorar seu problema. Em um tom jocoso acrescentou: “quero sair de lá como aquelas vacas leiteiras que é só apertar assim que jorra aquele leite! ” Assim, ela compareceu à sessão no dia marcado na presença do grupo de pesquisa. A sessão com Maria Luíza consistiu num momento de pesquisa clínica e qualitativa (Gonzalez Rey, 2005; Neubern, no prelo) que, além de ser terapêutica para a jovem, buscando atender suas demandas na medida do possível, procurou ilustrar para o grupo como se constroem as sugestões hipnóticas para um caso particular.

Diante dessas circunstâncias, o pesquisador resolveu evitar uma entrevista mais detalhada sobre o cenário subjetivo de Maria Luíza, pedindo a ela que se expressasse até onde se sentisse confortável diante do grupo de pesquisa. Além de oferecer-lhe um papel ativo no trabalho, exercendo controle sobre as informações, o que é importante tanto para a hipnose (Erickson, 1985), como para a pesquisa clínica (Gonzalez Rey, 2005), havia duas razões básicas nesta forma de abordar o sujeito. Por um lado, para preservar sua privacidade, já que ela estaria diante de um grupo e, como tal, isso poderia fazer com que se sentisse exposta ou pressionada, o que já acontecia em seu cotidiano familiar. Esse risco realmente existia já que algumas pessoas do grupo eram conhecidas suas de outros contextos, apesar de os membros do grupo relatarem não possuir proximidade afetiva com a jovem. Por outro lado, era também importante demonstrar que determinadas intervenções não carecem de uma avaliação muito detalhada para levarem a um bom resultado que, ao mesmo tempo, preserve a integridade do sujeito e ofereça propostas eficientes para suas demandas (Erickson & Rossi, 1979). Em suma, tais circunstâncias foram relevantes para demonstrar as possibilidades de construção de uma pesquisa clínica na própria situação de campo típica dos contextos de saúde atuais, de maneira a conciliar diferentes exigências que perpassam o cenário de investigação. Assim, embora exista o risco da exposição do sujeito diante de profissionais e estudantes, é possível minimizá-lo oferecendo-lhe controle sobre as informações a serem passadas (onde ele decide o que, quando e como devem ser expresso) e por meio da utilização de técnicas indiretas, como metáforas e analogias, nas quais o trabalho se volta para um nível simbólico e não para informações literais sobre o sujeito (Erickson, 1983; 1985). Ao mesmo tempo, foi possível demonstrar que, apesar de limitações como escassez do tempo, em certas circunstâncias, é possível intervir de maneira a produzir informações de pesquisa e atender as necessidades do sujeito.

Sendo assim, numa primeira aproximação interpretativa (Zeig, 1994; 2006), foi possível utilizar as próprias informações trazidas pela jovem naquela única conversa informal. Percebeu-se que um dos pontos importantes era sua própria audição acurada que, em meio a uma dinâmica de acusação familiar, contribuía para uma profunda irritação diante do bebê, como se seu choro fosse amplificado e se somasse a todo o coro de acusações que já sofria de sua família. Também foi possível notar que sua sensação de paralisia se relacionava a uma dinâmica em que se sentia profundamente pressionada pela família, como se seu espaço privado e sua própria subjetividade fossem frequentemente invadidos, levando-a a se sentir desqualificada. Nessa perspectiva, o pesquisador elaborou algumas estratégias que pudessem contemplar a situação de Maria Luíza de modo a fazer com que sua competência como mãe fosse retomada e o processo de amamentação pudesse fluir normalmente. Não se buscou, portanto, uma intervenção que destacasse a dinâmica relacional de críticas e acusações da família, mas apenas os recursos que apontassem para seu potencial como mãe que poderiam também ajudá-la a não tomar parte nesse tipo de transação.

Os recursos hipnóticos adotados foram profundamente influenciados pela noção de comunicação indireta (Erickson & Rossi, 1979; 1980). Tais técnicas, que incluem metáforas, analogias, jogos de palavras, consistem em estruturas linguísticas que são oferecidas ao sujeito em transe que não lhes impõem um conteúdo específico, mas permitem que eles mesmos construam suas associações dentro de determinado tema que é proposto pelo pesquisador.

O que caracteriza essa forma de comunicação é sua ênfase em recursos, geralmente inconscientes, que o sujeito não confere valor ou mesmo desconhece, mas que podem vir a ser de grande valia para um processo de mudança mais amplo (Neubern, 2004). Erickson (1980) considerava que as técnicas baseadas na comunicação indireta tendem a ser mais eficazes, já que é o sujeito quem se apropria de seus próprios recursos e potenciais e os utiliza a favor de suas próprias demandas e necessidades, sendo que as intervenções do terapeuta não são mais que desencadeadores desses processos. Desse modo, o pesquisador desenvolveu, durante o transe de Maria Luíza, três eixos de intervenção que foram trabalhados simultaneamente, visando objetivos específicos ligados a suas demandas.

 

Sobre o autor: Maurício S. Neubern:

  • Psicólogo (UnB/1995)

  • Mestre em Psicologia (1999/UnB)

  • Doutor em Psicologia (UnB/2003), com Estágio Sanduíche Université Paris VII (2001/2002-Capes).

  • Terapeuta –Terapia e Hipnose Ericksoniana (Instituto Milton Erickson de Paris, 2001/2002 e Instituto Milton Erickson de Belo Horizonte, 2005)

  • Master Certificate (Belo Horizonte e Milton Erickson Foundation, 2007)

  • Pós-Doutorado (Estágio Sênior): Centre Edgar Morin (CEM), École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), Capes 2015/2016.

  • Artigo de 2009.

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