Maurício da Silva Neubern. Parte II
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PRIMEIRO EIXO HIPNÓTICO – AFINANDO OS OUVIDOS
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Um dos pontos que chamou a atenção do pesquisador, inicialmente, foi a ênfase que Maria Luíza conferiu à escuta do choro de seu bebê. Nesse sentido, o pesquisador compreendeu que era necessário que tal processo fosse concebido como uma possibilidade para melhora de seu relacionamento com o filho ao invés de um problema sem solução. Em outras palavras, era preciso que sua sensibilidade auditiva fosse inserida no contexto terapêutico como uma habilidade a ser utilizada favoravelmente pela jovem (Erickson, 1958). Assim, o pesquisador teceu as seguintes sugestões:
“E você, Maria Luíza, escuta os sons lá de fora … essa construção em que os homens trabalham e quebram as paredes … e esse barulho pode ser irritante para muita gente … mas você pode acompanhar um pouco essas batidas e deixá-las vir até você … e notar que elas chegam até você e vibram em seu corpo … e você pode ficar com elas ou deixá-las ir embora…. E você também pode escutar os sons dessa sala, seus colegas que anotam nossa sessão e mexem nos cadernos … e você pode escutar a minha voz e fazer o que quiser com ela … e você também pode escutar os sons de sua respiração e perceber como é agradável respirar. ”
“E agora, você pode aproveitar esse momento em que seu corpo está repousado, em que você sente seu peso sobre esta poltrona, e sua respiração flui e ir pra onde você quiser … talvez você escute o choro de seu filho e possa acompanhá-lo também de uma forma bem tranquila … e estudar um pouco este choro e notar que ele vem até você, mas você pode deixá-lo ir embora… e como é bonito olhar pra esse menino aí deitado, dormindo … e eu não sei que música você ouviria agora … indo pra algum lugar onde você queira estar … talvez viesse até você aquela música do Djavan…”
Nesta breve sequência, cabe destacar algumas características que visaram auxiliá-la a modificar sua forma de escutar o choro do filho. No primeiro momento, o pesquisador fez um movimento progressivo que abrangeu desde o som externo até os sons da própria respiração da jovem, de maneira a desfocar do incômodo exterior (veja-se a ênfase na palavra irritante), para uma sensação de tranquilidade interna. Assim, foi passada à jovem a sugestão de que o ouvido poderia selecionar seu foco e, mais que isso, poderia sair de situações incômodas que estivessem a seu redor para se ater a processos internos de seu próprio mundo, aqui tranquilizados pela respiração suave e pela agradável sensação de relaxamento que já era visível naquele momento. Outra mensagem importante referiu-se a sua possibilidade de acompanhar com seu pensamento os sons irritantes – o que lhe sugeriu uma possibilidade diferente da irritação, que foi a de observar com tranquilidade esses estímulos. Dessa forma, ela acompanhou e percebeu que os sons chegavam a seu corpo, mas que ela possuía a opção de não se fixar neles, deixando-os irem embora, termo que é devidamente acentuado na voz do pesquisador.
Nesse sentido, a mesma sequência se repetiu com relação ao choro do filho que tanto lhe trazia incômodos. Ela já estava em outra condição para poder recebê-lo (em um estado mais relaxado e tranquilo) e poderia também aplicar o mesmo dispositivo: o de acompanhá-lo, deixá-lo tocar em seu corpo e, principalmente, deixá-lo ir embora. Ou seja, em outro contexto, ela possui a possibilidade de não se deter na irritação causada pelo choro e poderia se direcionar para viver outros tipos de experiência. O pesquisador completou a sequência acrescentando novamente uma cena agradável – a de poder observar o bebê deitado – sem fazer qualquer menção a seu choro. Reforçando essa cadeia de sugestões, o pesquisador lhe propôs ainda, baseado num conhecimento prévio sobre seu gosto pela música, que seus ouvidos poderiam trazer também, para junto de sua experiência com seu filho, uma experiência muito agradável – a música de Djavan, cantor a quem ela tanto apreciava.
Sendo assim, se anteriormente sua narrativa era marcada pela irritação causada pelo choro do bebê, agora o contexto hipnótico proporcionava em sua experiência subjetiva uma série de pequenas mudanças. O choro não deixaria de existir, nem a irritação; mas esta era qualificada de outra forma, como algo que pode ser liberado de sua experiência. Mas além do choro, as sugestões resgataram e ressaltaram experiências agradáveis de seu convívio com o filho, quais os momentos de relaxamento, de poder respirar bem, de observar o bebê dormindo e também de ouvir uma boa música. Em suma, novas experiências foram evocadas de sua própria subjetividade de maneira a lhe proporcionar um contexto de vivência mais rico e diversificado com seu filho.
SEGUNDO EIXO HIPNÓTICO – O LEITE
O leite aparecia como o representante inicial da queixa de Maria Luíza. Se seu médico lhe dizia que ele era produzido, ela se questionava sobre porque ele não fluía normalmente para seu filho no momento da amamentação. Assim, o pesquisador procedeu às seguintes sugestões hipnóticas.
“Eu me lembro, certa vez, assistindo ao Globo Rural de um fazendeiro que falava sobre a forma correta de ordenhar uma vaca… ele dizia que era importante para o animal que o peão se aproximasse com jeito … de uma forma amistosa … e pegasse em suas tetas com cuidado e com carinho … alguns fazendeiros gostam até de colocar música clássica no estábulo … e dizem que as vacas se sentem melhor e produzem mais leite … e eu fico imaginando como deve ser interessante pra vaca ouvir essas músicas e se deixar envolver por ela … ser tocada suavemente pela música…”
“E uma outra visão que é muito bonita, é a de um simples copo de leite … isso já pode abrir o apetite de muita gente … porque é algo muito saboroso … e talvez você possa se perguntar sobre como deve ser um balde de leite… ou uma banheira de leite … mas deve ser muito bom mesmo uma piscina de leite … e chegar à beira dela e olhar … e você pode fazer o que quiser … agora…” Nesta sequência de sugestões, há um primeiro momento em que o pesquisador retomou a necessidade de um contexto agradável para se conseguir algo – no caso a produção do leite. Ele aproveitou a piada da jovem, a de se tornar uma vaca leiteira, e construiu uma série de sugestões em que são ressaltadas algumas condições para que ela se sentisse bem e, assim, produzisse leite. É interessante notar que, a partir da piada, a jovem se identificou com a vaca, mesmo que de uma forma inconsciente, de maneira que as condições para que esta produzisse bem eram semelhantes àquelas que ela mesma precisava para que seu leite fluísse (Melchior, 1998). Outro ponto de identificação que as uniu foi a própria música, conforme enfatizado na voz do pesquisador: a música que tocou o corpo suavemente e trouxe uma sensação de bem-estar. No caso ainda é enfatizado, como nas sugestões sobre os ouvidos, que ela poderia se deixar envolver pela música sendo tocada por ela.
Já a segunda sequência apontou para um processo gradativo de produção do leite. Ela começou com um copo, onde foi acrescentada a sugestão de algo saboroso que abriu o apetite, associando à amamentação a dimensão prazerosa ligada ao leite. Esse prazer se repetiu em outras escalas e culminou com uma piscina de leite, que, em seu transe, a jovem relatou ter mergulhado e aproveitado bem. Portanto, se inicialmente o leite era associado à dúvida e a um bloqueio, ele passou a ser associado a um processo mais amplo, tal como simbolizado nas sugestões acima. Pela própria identificação com a vaca, foi possível lhe passar novamente a ideia de que a produção de leite estava ligada a boas condições, em que existia um contexto acolhedor, prazeroso e, às vezes, musical. Houve também outra característica importante que se referiu ao processo gradativo em que a sugestão foi construída. Inicialmente, sugeriu-se a visão de um copo de leite, associado à ideia de algo saboroso; em seguida, surgiu o balde e depois a piscina, ambos associados a algo prazeroso. Note-se que, nessa sequência, a imagem do leite surgiu de modo gradativo e foi associada ao prazer, o que possibilitou desvinculá-la aos poucos de sua associação com o bloqueio, com a impossibilidade. Assim, com uma sugestão permissiva ao final – a de que ela poderia fazer o que quisesse para aproveitar o momento – a jovem se permitiu de ter opção diante das circunstâncias que vivia no transe e também de aproveitá-la. Não foi por acaso que, em seus relatos, ela descreveu ter mergulhado na piscina de leite, onde brincou e se divertiu bastante.
Sobre o autor: Maurício S. Neubern:
Psicólogo (UnB/1995)
Mestre em Psicologia (1999/UnB)
Doutor em Psicologia (UnB/2003), com Estágio Sanduíche Université Paris VII (2001/2002-Capes).
Terapeuta –Terapia e Hipnose Ericksoniana (Instituto Milton Erickson de Paris, 2001/2002 e Instituto Milton Erickson de Belo Horizonte, 2005)
Master Certificate (Belo Horizonte e Milton Erickson Foundation, 2007)
Pós-Doutorado (Estágio Sênior): Centre Edgar Morin (CEM), École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), Capes 2015/2016.
Artigo de 2009.
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